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Memória Folkcom - Severino Alves de Lucena Filho

Atualizado: 22 de abr.




Por Andriolli Costa


A entrevista foi tão repentina quanto o convite. Eu havia acabado de fazer uma postagem no instagram da Rede Folkcom recuperando uma antiga fala do professor Severino Alves de Lucena Filho. Ao repercutir o material, vi pelas suas últimas postagens que ele estava de passagem pelo Rio de Janeiro. Que feliz coincidência! Enviei prontamente uma mensagem. Caso não fosse um incômodo, convidei, seria uma honra encontrá-lo para um café. Foi sorte: era seu último dia, mas o avião só sairia pela noite. Havia tempo.

 

A Páscoa mal havia passado e, quando enfim nos encontramos, ele me recebe com uma barra de chocolate. Um singelo "obrigado", escrito em chocolate branco, transmite a mensagem. Ainda que a gratidão do encontro seja minha, Severino reforça a importância do acolhimento. “Eu sempre acreditei que as homenagens devem ser feitas em vida. Depois que a gente morre, só vira saudades”.

 

Reconhecimentos não devem faltar a este discípulo de Roberto Benjamin, que tanto fez pelo campo da folkcomunicação e pelo consolidar da teoria. Sua dissertação de mestrado, defendida em 1998, foi o embrião daquilo que anos depois seria gestado na forma do artigo “Do ex-voto ao folkmarketing”. Nele, avança na leitura beltraniana para pensar as formas de apropriação do popular pelo mercado e pelas instituições.

 

“A evolução das relações de mercado ressalta nos últimos anos a importância do Folkmarketing na prática organizacional”, sintetiza Lucena Filho no texto em questão. Para que o investimento empresarial em manifestações da cultura popular? Para, assim, "alcançar maior evidência no mercado, aproximando-se de seus públicos e conquistando sua credibilidade e simpatia na vinculação dos seus produtos e serviços em projetos culturais”. O artigo foi republicado em 2013 na antologia Metamorfoses da Folkcomunicação, e pode ser lido aqui.

 

Ativo desde os primeiros anos da Rede Folkcom, acompanhou de perto as disputas acadêmicas que escanteavam a teoria tal qual seus próprios objetos eram igualmente menosprezados pelas instâncias de poder. “Uma teoria tupiniquim”, relata já ter ouvido, a título de deboche. Sem nunca aceitar embaraços, abriu caminho pelas veredas universitárias. Graduado em Agronomia e Relações Públicas, Severino é mestre em Administração e Comunicação Rural pela UFRPE, com doutorado em Comunicação Social pela PUCRS, e pós-doutoramento na Universidade de Aveiro, em Portugal.

 

Aposentado da Universidade, vê com gentileza os convites para bancas e palestras, mas os recusa. Outra grande lição que aprendeu com seu mestre Benjamin, reforça: saber a hora de chegar e de partir. "A sensação é de dever cumprido". Enquanto nosso café esfriava, na mesa da praça de alimentação do shopping, aproveitamos a oportunidade para esta breve entrevista. É a melhor maneira de partilhar um pouco da sagacidade do olhar atento de quem vê a cultura em movimento a cada instante do cotidiano.

 




Andriolli: Professor, eu gostaria que você nos dissesse quem é você e como começa sua relação com a folkcomunicação.

Severino: Eu sou Severino Alves de Lucena Filho, professor pós-doutor. Atuei na UFPI, UFPB e no Mestrado em Extensão Rural e Desenvolvimento Local na UFRPE. Em todas essas três instituições, atuei na área de comunicação social e de comunicação e desenvolvimento rural. Nesse contexto nasce a minha semente da folkcomunicação.

 

O germinador dessa semente no meu universo cultural foi o professor Roberto Benjamin, que foi meu orientador no mestrado na UFRPE. Ele foi quem me apresentou a folkcomunicação na década de 1990 a partir desse universo, das teorias de Luiz Beltrão e Luís da Câmara Cascudo - porque não podemos estudar folkcomunicação sem fazer referência ao professor e pesquisador Câmara Cascudo.

 

Benjamin dividiu sua disciplina de folkcomunicação em duas etapas. A etapa teórica, onde ele colocava toda as referências teóricas e metodologias de pesquisa, e uma segunda etapa, de trabalho de campo. Eu e minha turma fomos para Tracunhaém, onde se trabalha muito o artesanato figurativo e o artesanato utilitário. Nessa ida a Tracunhaém, encontrei vários artistas que performavam como passistas de frevo e porta estandarte. Foi a partir daí que comecei a observar como trabalhar o frevo dentro do universo da folkcomunicação.

 

Eu creio, ou melhor, afirmo com certeza que minha dissertação de mestrado foi o primeiro estudo na área de folkcomunicação em conexão com a comunicação organizacional. No caso, eu trabalhei com o bloco Azulão do Bandepe (1998). A sigla vinha do Banco do Estado de Pernambuco, e consistia em um bloco carnavalesco fundado por contínuos da instituição. O grupo se utilizava dos elementos da cultura popular - como a sombrinha, o frevo, os estandartes com a temática usada pelo Carnaval, usando as cores do banco. No caso, o azul. Então toda sexta-feira de Carnaval, desde 1982, saia o Azulão do Bandepe – e as agências de cada cidade do interior de Pernambuco mandavam seus representantes para participar do bloco.

 

Eu busquei entender, assim, este modo como o Azulão do Bandepe era utilizado como estratégia de marketing pelo banco do Estado de Pernambuco no sentido de estimular o pertencimento, no sentido de valorização da cultura local junto ao público e seus funcionários. Toda a estrutura do bloco era segmentada, privilegiando os públicos do banco. Tinha o camarote VIP, que era para os acionistas, as autoridades... outro para os funcionários do banco e o povão seguia os trios elétricos e orquestras de frevo.



 

Andriolli: Quando a folkcomunicação é proposta por Beltrão, ela era centrada nas estratégias de resistência das classes populares. Dos brincantes. Como se dá este movimento de pensar a perspectiva da instituição – tanto pela folkmídia quanto pelo folkmarketing?

Severino: Essa virada, essa apropriação, foi um olhar que construímos junto com o professor Roberto Benjamin. Porque o professor preservava a tradição do estudo da folkcomunicação, mas também tinha um olhar futurista. Ele não colocava os estudos da folkcomunicação dentro de uma redoma. Não, ele via quais as nuances ou quais as novas abrangências que a comunicação poderia assumir a partir dessas novas leituras. Creio que se hoje estivesse vivo, a inteligência artificial seria uma das áreas de estudo dele.

 

Ele era um visionário, sempre preservando a base os elementos culturais... Os ex-votos, as benzedeiras, as carpideiras, o artesanato, a música popular. Esses elementos ele fazia questão de valorizar, mas não fazia uma separação. A proposta de Roberto Benjamin, a nova obra abrangência da folkcomunicação, era a da conexão, nunca da separação. E eu creio que quem estuda as teorias da comunicação não pode pensar no processo seletivo. O objetivo é a consolidação através da inclusão.

 

Andriolli: E quanto você passa a pensar estas questões também ligadas ao turismo?

Severino: O que eu chamei de folkturismo vem de um trabalho que desenvolvi junto a uma aluna do mestrado em São Severino dos Ramos, que é um santuário que congrega uma devoção muito forte do povo nordestino. Começou pelo turismo religioso e, a partir dessa leitura e da constatação e das vivências do turismo religioso que nós inserimos o folkturismo. Algo que depois ampliamos para pensar a gastronomia, a moda... Hoje você está usando uma camisa que traz elementos folkcomunicacionais: remete à festa junina, tem imagens de balões, igrejas... uma nordestinidade. É uma produção da moda no contexto da folkcomunicação. Recentemente, na Bahia, eu constatei na minha última viagem muito essa utilização de elementos da cultura baiana na moda. Não a religiosidade – como nos turbantes ou guias. Falo de elementos da cultura cotidiana.

 

Já em São Paulo, observei também no universo da decoração e da arquitetura a utilização de ex-votos como itens de decoração... Eu vejo de forma positiva. Porque uma coisa é você usar aquela peça como objeto de decoração, outra coisa é o seu uso religioso.

 

Andriolli: Até porque existem santuários em que se usa bonecas de plástico como ex-votos. Isso não faz com que o objeto boneca seja sagrado, mas ele se torna sagrado pela ação do devoto.

Severino: Isso. Ou o vodu! Há diferença entre o objeto boneco e a intencionalidade do seu uso para prejudicar. Ainda sobre bonecas, eu me lembro que na Paraíba há uma cidade chamada Esperança que se tornou pioneira na utilização de bonecas como elemento de referência turística. A ex primeira-dama, professora e socióloga Ruth Cardoso, criou em 1999 o programa Artesanato Solidário que levou a criação do projeto “Casa da Boneca de Esperança”. Então o Itamarati passou muito tempo utilizando a boneca esperança como presente. Ou seja, é uma tradição que foi institucionalizada no universo da diplomacia brasileira.

 

Andriolli: Eu me lembro que na posse do presidente Lula, foi muito noticiado na mídia o vestido da Janja que foi feito por bordadeiras de Timbaúba dos Batistas, no Rio Grande do Norte...

Severino: A própria posse foi um exemplo de inclusão e de cultura popular. Ali você tinha representação de vários segmentos da sociedade: o indígena, o negro, a pessoa com deficiência. Até o cachorro, né? Pois os animais fazem parte desse universo da cultura popular também.

 

Andriolli: Vamos aproveitar para pensar sobre isso, professor. É uma discussão muito contemporânea a questão da virada não-humana nos estudos de comunicação. Mas nos contos populares, esse deslocamento do personagem para o lugar do animal é uma constante. Assim, uma teoria como a folkcomunicação, construída a partir do folclore, já teria tudo para pensar essa tensão do antropoceno desde os anos 1960.


Severino: A gente pode levar para o campo dos afetos. O animal sai do quintal, do entorno da casa, e se torna integrante da família. É um acolhimento do animal doméstico como referência de sensibilidade. Em Campina Grande, na festa junina, você encontra cãezinhos com roupa de matuto. Camisa quadriculada, chapeuzinho com laço de fita...

 

Temos também a “apologia ao jumento”, nosso irmão, de Luiz Gonzaga. Um animal sagrado, pois Jesus entrou em Jerusalém em cima de um jumento. Jumento é resistência, é folkcomunicação. É bom deixar claro que nem tudo é folkcomunicação, mas é preciso ver esta conexão com o que há de essencial que é a cultura popular.

 

Andriolli: Eu percebo, professor, que como a palavra "folclore" tem sido questionada há tempos, pesquisadores da folkcomunicação tentaram recusar nosso lastro nos estudos folclóricos. Como você vê isso?

Severino:  Eu diria a você que este é um olhar mesquinho, um olhar miúdo. Por que o que é o folclore se não o estudo do povo? Folk-lore. Estudar o povo é estudar a sua comunicação também. Como é que esse povo se comunica? Através da dança, da comida, dos rituais religiosos. Eu creio que era uma questão de demarcação de território teórico ou mesmo de desconhecimento. Mas nossa grande referência, Luís da Câmara Cascudo, não fazia essa distinção. Ele tem cartas trocadas com Luiz Beltrão onde faz essa referência e esse acolhimento da comunicação.

 

Andriolli: Sobre isso, professor, eu me lembro de questionamentos sobre os modos como as quadrilhas juninas, muitas vezes, acabam moldando suas performances a partir das demandas do Festival de Quadrilhas Juninas, organizado pela Globo Nordeste. Como entender esse movimento de transformação da festa a partir da demanda midiática?

Severino: Muito feliz essa sua colocação, Andriolli. Vamos fazer uma comparação: o samba no Rio de Janeiro nasce onde? No morro. O desfile? Dos blocos, dos ranchos carnavalescos, na Avenida Rio Branco. Não havia nenhuma marcação de tempo, nenhuma sistematização. Quando se vai para o Sambódromo, isso muda. A mesma coisa acontece com as quadrilhas juninas.

 

Há um segmento que exorciza as quadrilhas juninas por elas se enquadrarem nas exigências da Rede Globo. Tanto em relação ao tema, quanto em quantidade de figurantes, horário, coreografias..., mas nós temos que entender que a festa junina é muito além do que está no festival. A quadrilha junina acontece nos bairros. No Rio Grande do Norte, nos palhoções, cada bairro tem uma quadrilha que não tem qualquer relação com o circuito da Globo.

 

O circuito peca por descaracterizar elementos próprios do universo originário da quadrilha junina, mas ao mesmo tempo, muitos da juventude não iriam aceitar participar para dançar quadrilha no seu modelo tradicional. Há uma evolução que faz com que esses elementos sejam redirecionados, mas a festa junina em si, a sua essência, ela é preservada no Nordeste.

 

Ela tem início com o plantio do milho, no dia de São José em 19 de março, que vai ser colhido para as comidas de junho. Você vê em muitas cidades pequenas as pessoas prepararem canjica, cobrir o prato em uma toalhinha limpa e mandar o filho levar para o vizinho. O que isso comunica? Que esta é uma festa de socialização, de pertencimento, de compadrio.  

 

Andriolli: Dizem que é comum, no entanto, que as quadrilhas mais midiáticas sejam justamente as que mais chamam atenção e, por isso, acabam sendo privilegiadas em editais ou convites para apresentação em festivais.

Severino: É uma forma de ganhar dinheiro, também, né? Mas ultimamente eu tenho observado que nas quadrilhas do Ceará e da Paraíba, aquelas que tem trazido temáticas bem regionais dentro de uma linguagem singular e de uma estética também singular tem sido as mais vitoriosas. E aquelas que trazem o modelo Carnaval do Rio de Janeiro não estão mais sendo contempladas com o primeiro lugar.

 

Andriolli: Interessante! É importante pensar nessa dinâmica da cultura em que movimentos vão e voltam.

Severino: Essa oscilação, essa movimentação, é necessária. Assim como a aceitação das mudanças. O pesquisador seja em comunicação, seja em literatura, seja na área de direito, na área da saúde, na área do da medicina, da psicologia... ele precisa estar aberto a essas mudanças, porque elas são necessárias para que haja essa absorção; essa inserção de um novo público que se dá pela linguagem. No nosso caso, isso está na cultura local, mas também está na cultura global.

 

Andriolli: Como aqueles vídeos que viralizam de quadrilhas juninas que param a apresentação para fazer uma coreografia de TikTok.

Severino: Sim, é a instalação dessa nova linguagem da informática, das novas tecnologias. Essa absorção se faz necessária. Como será a cultura daqui uns anos com a IA interferindo no processo de construção de uma quadrilha ou escola de samba?

 

Andriolli: Nós já começamos a perceber muitas escolas de samba utilizando IA para fazer os primeiros desenhos e artes conceituais do tema do destile do próximo ano.

Severino: Pois é, mas existe todo um projeto. A partir daí eles vão entrar no processo de confecção, onde a mão-de-obra popular, do ser humano, é que faz a arte. A IA a complementa, mas é o humano que insere o seu valor artístico independentemente que o desenho inicial tenha sido feito por um computador.

 

Andriolli: É verdade que não podemos achar que o “croqui” vai ser equivalente ao resultado final da produção, afinal, nunca foi assim.

Severino: Não é? Este não é o resultado final, é um elemento de complementação. Por que quem é que vai soldar? Quem é que vai pregar as lantejoulas? Quem é que vai pregar os fuxicos? Quem é que vai emendar os tecidos para fazer as saias? São as costureiras, as mulheres... Você pode fazer um croqui belíssimo, mas sempre será apenas a referência.

 

Andriolli: Muitas vezes ouvimos críticas a essa postura do pesquisador de ser muito conservador com mudanças. Como você entende essa tendência?

Severino: Eu acho que o pesquisador tem que ser atualizado constantemente. Ele tem que receber as novas tecnologias, as mudanças, as transformações, as apropriações, as desconstruções de forma positiva. Porque ninguém é dono do saber. O saber não é propriedade privativa de uma só pessoa ou de um só teórico. Quantas pessoas hoje reestudam e reelaboram os olhares de Gilberto Freyre, Câmara Cascudo, Edison Carneiro, Joãosinho 30...

 

Agora no Carnaval eu acompanhei toda uma série do Sem Censura dos novos carnavalescos. Eles beberam todos em Joãosinho 30, que foi capaz de transformar o lixo em luxo. Só que eles utilizam a IA, eles utilizam as novas tecnologias, e dizem: "Se não for a mão de obra, se não for o sangue e o suor humanos, a escola não vai para a rua”. O mesmo nas quadrilhas,

 

As quadrilhas movimentam a economia doméstica. Eu tenho observado que várias mães e vários quadrilheiros e quadrilheiras vendem bolo, coxinha, água mineral e eu ouvi uma mãe dizer: "Eu faço coxinha na sexta-feira para no sábado e no domingo vender para ajudar comprar e confeccionar a roupa da minha filha. Ela vai realizar meu sonho, porque meu marido não me deixava dançar quadrilha, mas ela vai participar”. E isso, a dimensão do sonho, as novas tecnologias, jamais irão apagar. E isso nenhum teórico da comunicação vai entender por que ele é incapaz de sair do seu gabinete e de ir para o ato da experiência, de viver a realidade. Esta é a grande diferença do estudioso da folkcomunicação – que vai a campo, que olha.

 




Andriolli: Este ano eu tive a experiência de primeiro ouvir os sambas enredo pelo Spotify e depois ir aos ensaios de rua do Grupo Especial. E é muito interessante ver que muito samba que me pareceu enfadonho no estúdio ganha uma nova dinâmica quando se está vendo a comunidade envolvida, cantando, presente. Isso faz pensar como às vezes a gente se preocupa com a mídia tornando tudo em espetáculo, mas esquece de lembrar que o espetáculo não aconteceria se não houvesse sentimento de pertencimento pela própria comunidade.

Severino: É aquilo: “explode coração na maior felicidade”. Certo? Porque aquele sistema do desfile da Sapucaí é uma coisa, lá na comunidade é outra. Ou no Bumbódromo em Parintins. Nosso grande Milton Cunha, este ano, deu ênfase a duas temáticas importantíssimas do carnaval do Rio em 2025: o negro e o movimento LGBTQIA+. Eu mesmo mandei buscar uma camiseta “Quem tem medo de Xica Manicongo”, que foi enredo da Paraíso do Tuiuti, considerada a primeira travesti não indígena do Brasil. Foi um exemplo de inclusão e um ótimo tema para ser estudado pela comunicação, não é? Você vê como os sambas enredo têm valorizado Exu, as Yabás... E quem preconizou isso tudo foi Clara Nunes, Dona Ivone Lara, Clementina de Jesus... Essas matriarcas do samba que já traziam estes elementos que muito tempo ficaram escondidos.

 

Andriolli: Você acredita que, ao lançar uma obra cultural inspirada em uma tradição popular pouco conhecida, o público realmente vai atrás para saber mais do que foi exposto na própria obra?

Severino: Veja aí o desfile da Portela de 2024, que fez o livro Um defeito de cor de Ana Maria Gonçalves esgotar em 24 horas na Amazon. A escola de samba também tem essa preocupação de dar visibilidade a elementos que até então ficavam nos bastidores ou eram sufocados pela grande mídia. Como agora eu tive a oportunidade de ver o santuário de Zé Pelintra. Seu Zé e Exu eram exorcizados, eram tidos como “demônios”, e hoje são referências da cultura carioca a partir de trabalhos como do Salgueiro e da Viradouro que trouxeram Exu para a Avenida. E Exu é uma entidade do bem, Seu Tranca Rua é uma entidade do bem...

 

Andriolli: Como foi sua visita ao santuário de Zé Pelintra nos Arcos da Lapa?

Severino: Foi uma experiência de espiritualidade. Quando eu cheguei no Santuário de Zé Pelintra havia pessoas emocionadas, fazendo oferenda, deixando cachaça, vela vermelha, chapéu. As pessoas tirando e deixando lá seu chapéu. Eu vi ali duas variáveis de pesquisa de Folk que devem ser acolhidas pelos estudiosos aqui no Rio de Janeiro. Primeiramente que o santuário é um ex-voto, um pagamento de promessa. E Zé Pelintra está dentro daquele contexto da Lapa. O que é a Lapa se não uma encruzilhada de desejos, de sabores, de prostituição, de drogas? Seu Zé é isso. Exu é isso. Maria Padilha é isso. Maria Navalha é isso. São entidades que estão ligadas a esse universo da cultura popular e que não podem ser escondidas e que não podem ser renegadas nem muito menos demonizadas.

 

Há ainda o folkmarketing, porque o casarão de seu Zé se apropria de elementos da espiritualidade para dar é visibilidade ao comércio e tem uma série de barracas que vendem produtos ligado a Zé Pelintra, Maria Navalha... Maria Navalha é, evoca, Madame Satã – que foi uma referência cultural da Lapa. Assim como foi Lolita, travesti negra de Recife que a polícia nunca conseguiu dominar. E o folkturismo, já que os produtos de seu Zé estão sendo utilizado como estratégia de turismo religioso. Eu acho que isso daria um belo estudo, e eu me candidato a ajudar quem quiser fazer.

 

Andriolli: Professor, muito obrigado pela conversa de hoje. Qual mensagem você deixaria para os novos pesquisadores da folkcomunicação?

Severino: De coração aberto, eu faria uma referência e uma reverência para que os novos pesquisadores leiam Roberto Benjamin, leiam Professor José Marques de Melo, Edison Carneiro, Câmara Cascudo... E que abrace o estudo da folkcomunicação não como apenas um elemento teórico, mas um uma experiência de vida, uma relação de pele, de osmose, com a comunicação.

 

Andriolli: E leiam Severino Lucena Filho!

Severino: Quando quiser trabalhar na estratégia de folkmarketing, leia sim!

 
 
 

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Nosso querido mestre Professor Severino Lucena, arrasando sempre!

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